• Autogestão na pandemia: o Coletivo Pão e Tinta e a arte como transformação social

Autogestão na pandemia: o Coletivo Pão e Tinta e a arte como transformação social

Entrevista realizada em 14 de julho de 2021

Fotos: Reprodução / Coletivo Pão e Tinta

Em mais de 1 ano e meio de pandemia, não é só o cenário da Covid-19 que afeta o cotidiano da população. Além dos atrasos nas vacinas, a dificuldade em obter o auxílio emergencial, o desemprego, a escassez de água e a violência, mais de 19 milhões de pessoas estão em situação de fome e insegurança alimentar, o que afeta principalmente os territórios periféricos e favelados do campo e da cidade, as populações negra e indígena e outras comunidades tradicionais. Através de alternativas populares e estratégias coletivas de autogestão, movimentos sociais, coletivos e grupos resistem, enfrentam e transformam essa realidade. 

O Plano Popular Alternativo ao Desenvolvimento (PPAD) traz a série Autogestão na Pandemia,  com quatro entrevistas de coletivos, grupos e movimentos sociais que fazem parte do Coletivo Autogestão, criado a partir do Curso Autogestão, promovido anualmente pelo Instituto Pacs. A terceira conversa é com Pedro Stilo, agitador cultural e acelerador social do Coletivo Pão e Tinta. O Pão e Tinta é formado por artistas, produtores(as), articuladores(as) sociais e militantes periféricos/as residentes, em sua maior parte, na Comunidade do Bode, no Bairro do Pina, em Recife, Pernambuco. O coletivo realiza diversas ações de potencialização artística da cena independente, utilizando a arte como meio de transformação social, com força ativa nas periferias do Pina.

O material foi produzido por Isabelle Rodrigues, Aline Lima, Yasmin Bitencourt e Rafaela Dornelas, que fazem parte do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs)

 

Instituto Pacs: Com o que o seu coletivo atua e qual a sua participação nele?

Pedro Stilo: O Pão e Tinta é um coletivo de arte de mais de dez anos de existência que engloba muito a juventude e agora adultos - a maioria negros e negras de periferia - e que trabalha com todo tipo de arte. Nós fazemos uma inserção na periferia com cultura, arte e economia criativa. Realizamos também um trabalho social com crianças na Livroteca Brincante do Pina, que quando fazem 15, 16 e 17 anos, a ideia é que venham para o Pão e Tinta para trabalhar com arte, música, rap e teatro. Também realizamos o leilão Pão e Tinta.

 

Instituto Pacs: Como a pandemia impactou o dia a dia de vocês? 

Pedro Stilo: A pandemia veio como um choque, nós estávamos muito embalados com as atividades. Na periferia é muito difícil ficar em casa, se cuidar, e as agendas foram canceladas porque o grafite está na rua, a maioria das coisas é apresentada para o público. Nós tivemos que nos reinventar, fomos para o digital, pensamos muito em audiovisual, realizamos atividades no espaço virtual, mas isso só aconteceu porque o nosso coletivo tem muita experiência. Imagine as pessoas que não tem… Nós conseguimos trazer muitas pessoas, conseguimos ajudar artistas, mas para a classe artística continua sendo um baque até agora, principalmente aqueles que trabalham com shows, festas, performances, apresentações… O próprio grafite está parado porque as pessoas não estão abrindo as lojas e não tem como ter pintura comercial. Nós conseguimos nos reinventar e fazer pinturas de telas, mas é algo muito pontual. A pandemia foi muito ruim para todos os setores, mas para os artistas foi um pouco mais. 

 

Instituto Pacs: E como você enxerga os maiores desafios do dia a dia durante a pandemia, principalmente no início do processo?

Pedro Stilo: Foi difícil, ficamos estagnados durante um ou dois meses para saber o que fazer e isso atrasa muito as atividades. A pandemia é algo que ninguém viveu. A maioria dos governantes, tanto estaduais e municipais, não contribuíram muito e não escutaram quem deviam ter escutado, então as coisas demoraram para chegar. Depois começaram a caminhar, especialmente a organização das pessoas com a Lei Aldir Blanc, a partir da pressão popular da classe artística. Nesse primeiro momento foi muito difícil, porque muitas pessoas ficaram sem trabalho, sem ter onde morar, as ocupações sem água. Se não fosse justamente as organizações e a autogestão… Depois desse tempo mais estagnado, começamos a confluir com as organizações, os institutos e as organizações populares para caminhar e se manter durante esse tempo. 

 

Instituto Pacs: E quais foram as principais estratégias que vocês adotaram ao longo desse tempo? 

Pedro Stilo: É muito doido fazer esse resgate histórico de um ano porque vemos que realizamos muitas coisas. Tem muito esse lado da criatividade que aguça. Nós levamos o leilão para o formato digital e conseguimos remunerar mais de 400 artistas durante um ano. A cada um mês nós temos um leilão rolando no feed do Instagram. A Aquarelena foi um grande desafio, um projeto que desenvolvemos para os artistas dividirem da sua casa o processo criativo. Na segunda edição, foi um jogo que ajudou a agitar a cena, as pessoas pintaram telas e chegamos a ter 30 mil votos em algumas artes, levando o projeto para um grande público. Nesse meio tempo, organizamos uma rádio comunitária numa bike e em um barco com o apoio do Pacs. Um  núcleo de mulheres aprovou um projeto que vai ter em um poste também recentemente, dando força a esse formato de comunicação popular. Rodamos um podcast com vários temas na bike, no barco e agora teremos no poste. Nós fizemos muitas lives com muitas pessoas do rap, da música e das artes visuais porque somos um coletivo de vários segmentos artísticos. Realizamos o Encontro Internacional de Artes Pão e Tinta, que sempre fazemos todos os anos e, agora na pandemia, fizemos virtualmente. Também conseguimos gravar o primeiro álbum audiovisual “Barbarize”, que são seis clipes de uma dupla de sucesso aqui do Pina. E agora estamos concluindo um mapa afetivo dos grafites do Pina, mapeando o que pintamos, o quanto foi de doação nossa, o que foi por parte da Prefeitura que ajudou, o quanto foi apagado, onde temos que voltar. Em um ano tocamos muitas coisas… Produzimos a semana de formação da Livroteca Brincante do Pina, conseguimos fazer uma campanha de distribuição de mais de 1500 cestas básicas e material de limpeza. Os pescadores de Recife sentiram um forte impacto com o derramamento do óleo e dois meses depois estourou a pandemia, quando eles estavam quebrados. Para ajudar na recuperação deles, nós desenvolvemos uma atividade de economia criativa, o Vale Sururu - prato típico de Pernambuco, e conseguimos o dinheiro das doações. Em vez de comprar no mercado as cestas prontas, nós remuneramos mais de 30 pescadores e pescadoras e as pessoas ganhavam um vale para retirar 2 kg de sururu, uma boa quantidade de comida. Nós criamos outras tecnologias de diminuição de desigualdades periféricas, nos reinventamos completamente, fizemos coisas antigas, outras novas, e conseguimos realizar tudo isso de maneira coletiva. Não sou só eu, tem muitas pessoas envolvidas no coletivo Pão e Tinta, na Livroteca Brincante do Pina, na Palafite, nos espaços que construímos. Temos uma grande rede aqui no Recife e no Brasil todo, uma teia que se mantém, que acredita, troca e compartilha tecnologias de diminuição de desigualdades periféricas. 

 

Instituto Pacs: Ao longo desse tempo, como você foi afetado diante dos desafios apresentados pela pandemia? 

Pedro Stilo: Infelizmente não podemos ter medo de paralisar, porque a vida é um turbilhão, uma loucura. Mas tive bom senso, paramos de ir em festas - isso estava rolando em algum lugar, na casa dos amigos, com muita gente. Nós realizamos alguns eventos, mas diminuímos. O futebol de terça-feira que juntava muitas pessoas parou. Está voltando agora e, mesmo depois de ter voltado, esperei me vacinar. É uma ideia coletiva de bom senso. Vivemos uma linha tênue com o medo, eu perdi minha mãe muito cedo, vivendo na periferia acontecem muitas coisas… O medo existe, mas é de outras coisas. A pandemia me deixou com a responsabilidade de ficar ligado, andar de máscara e lavar sempre as mãos, diminuir as minhas atividades, pela minha família, já que só eu ia para a rua. Nem as crianças, nem a minha companheira tinham essa prática de irem para a rua. Mas não tive muito medo, a pandemia estava ligada ao medo de morrer e acaba que nós não temos tanto, vivemos acreditando que tem outra vida em outro momento e se for a hora de ir embora, a gente vai, a história fica e acabou. Mas pelas outras pessoas tinha um receio e cuidado maior, porque não era brincadeira. Só que não podia parar, porque inclusive somos nós que tocamos todos os projetos com a galera, é um núcleo que precisa de si. No próprio evento do Pão e Tinta, quando foi online, nós seguimos todas as regras sanitárias, tínhamos cinco pessoas diferentes fazendo as performances em horários diferentes, nunca aglomerando em camarim. Nós conseguimos gravar em dias diferentes e no final só ficavam as pessoas da produção, que era praticamente uma família que se isolou junto nesse processo e, com isso, ninguém foi contaminado.

 

Instituto Pacs: Como está a dinâmica no seu território em relação à vacinação?

Pedro Stilo: Na periferia foi um “corre” danado porque a comunidade não sabe o que é parar, nem tem condições de ficar em casa. Algumas pessoas tinham receio e medo, mas não tem lugar seguro e fica muito difícil explicar as coisas. Por exemplo, durante a semana as pessoas pegam o ônibus lotado e no domingo elas não podem ir à praia. E aí tem o questionamento: se eu me arrisco durante toda a semana, por que não posso fazer isso no domingo também? Se tivesse sido organizado de uma forma com as regras funcionando, poderíamos culpabilizar a galera, mas nós sabemos que é falta de política pública. Esse país não está preparado para coisas que acontecem todos os anos, imagine estar pronto para algo que nunca aconteceu… A galera tocou de todo jeito e como sempre a periferia tem as suas estratégias, suas crenças, suas formas de se proteger. Estou vendo muitas pessoas se vacinando, mas também existem muitos negacionistas e infelizmente pessoas contestando coisas que não deviam. A vacina é proteção há muitos anos. Quando nós deixamos de acreditar em algo que existe há mais de 50 anos de nossas vidas? Ou escolhendo a vacina que quer tomar? Quando você ia para a escola, tinha que tomar a vacina, tinha o cartão. Isso era algo que na minha cabeça não poderia existir. Isso nos assustou muito e nós combatemos com a circulação de informação certa, com notícias via bikes, dando ideias nos programas que participamos, na conversa com cada pessoa, compartilhando fotos nossas quando nos vacinamos nos grupos da comunidade, deixando claro que estamos todos bem. Isso vai encorajando as pessoas. Até mesmo quem é negacionista é porque acredita em um discurso, porque tem medo, um receio, tem uma falta de conhecimento. Não podemos negar isso e nem deixar as pessoas na mão porque a vacinação é um processo coletivo, é uma estratégia de imunização coletiva, então temos que convencer essas pessoas a se vacinarem. Temos poucas pessoas se negando, mas ainda temos que convencer quem resta. 

 

Instituto Pacs: Quais são as atividades em prática no momento? Onde podemos acompanhar vocês nas redes sociais? 

Pedro Stilo: Nesse momento nós estamos com os leilões e isso está reunindo muitas pessoas e remunerando muitos artistas. Estamos na reconstrução do Fórum Popular de Arte Urbana, o FOP Rua, reunindo várias pessoas e também conseguimos reestruturar uma política pública que é a Colorindo Recife. Juntos estamos fazendo curadoria coletiva, comissão colegiada, realizando muitas atividades que aprendi com o Pacs também. E estamos ainda na correria de desenvolver podcasts. Nós já temos a Livroteca e estamos gravando os últimos episódios. Estamos procurando pessoas que possam dar um apoio no projeto “Nossa Arte é Política”. Nós queremos conversar com os artistas, questionando como foi a pandemia e o que eles acham da conjuntura política, contando isso de forma que dialogue com quem está na periferia. São os artistas do brega funk, do funk, do grafite, do rap… São os artistas de rua, de periferia. Queremos fazer isso para tentar fomentar arte e política juntas. Esses são nossos projetos por hora. Sobre as doações, a Livroteca Brincante do Pina recebe doações constantemente, tem o pix, é só entrar na página do Instagram no @livrotecabrincantedopina. 

 

Instituto Pacs: Você gostaria de fazer alguma colocação final? 

Pedro Stilo: Gostaria de agradecer por esse espaço e que nós resistimos e sobrevivemos nas periferias graças aos espaços organizados como o Pacs e outras redes. Precisamos seguir unidos porque nas periferias a luta tem sido grande, mas seguimos criando tecnologias e ferramentas de diminuição das desigualdades. Precisamos fomentar e fortalecer isso mais do que nunca. Precisamos ir pra luta, fazer as denúncias, falar o que está errado e principalmente lutar pelo direito de ser livre, de continuar escolhendo nossas lideranças nesse país. Que a democracia seja nossa pauta principal.

 

Contribua com o Coletivo Pão e Tinta!

 

Instagram: @coletivopaoetinta

Facebook: Pão e Tinta

Chave Pix:  81996704940 (Celular)