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Intercâmbios Brasil-Argentina: Instituto Pacs promove novos encontros para trocas de saberes entre mulheres agricultoras do campo e da cidade

Ao final do mês de fevereiro de 2024, a equipe do Instituto Pacs esteve novamente na Argentina para aprofundar os diálogos com movimentos e grupos de mulheres em luta por soberania alimentar na América LatinaOs intercâmbios vem acontecendo desde junho de 2023, quando nossa coordenadora institucional Aline Lima esteve no país e conheceu a experiência da Unión de Trabajadores y Trabajadoras de la Tierra (UTT).

Desta vez, o grupo contou com a participação de Yasmin Bitencourt e Ana Luisa Queiroz, coordenadoras de projeto do Pacs, e também com a presença de companheiras de movimentos e territórios parceiros, representando mulheres agricultoras do campo, das favelas das cidades e também da juventude: Yane Mendes – da Rede Tumulto, coletivo de comunicação popular de Recife (PE), Ana Santos – do Centro de Integração da Serra da Misericórdia (CEM)no Complexo da Penha, zona norte do Rio (RJ), e Vera Domingos – da Associação de Agricultores do Engenho Ilha, impactada pelo Complexo Industrial Portuário de Suape (CIPS), na Cidade do Cabo (PE).

A programação iniciou no dia 27 com uma visita à Biofábrica e ao Armazém da UTT, que são, respectivamente, a unidade de produção de insumos para a agricultura e o espaço de comercialização dos produtos agrícolas das mais de 22 mil famílias campesinas que compõem o movimento. Em seguida, realizamos uma roda de conversa com as mulheres agricultoras, para partilha de experiências e relatos sobre a relação com a cozinha e a produção de alimentos. Os relatos trouxeram a importância da cozinha para alimentar e fortalecer os movimentos sociais populares de diversas maneiras, para além da comida.

No segundo dia (28), visitamos duas quintas de agricultoras da UTT, que são espaços produtivos onde as mulheres cultivam hortaliças, flores, legumes e muitos outros tipos de alimentos. Depois, facilitamos uma formação com o tema “Saúde, Cozinha e Agroecologia”, da qual participaram cerca de 40 mulheres do movimento, onde contamos da história do Pacs e da relação da organização com agroecologia e agricultura urbana no Brasil. Nossas companheiras brasileiras também compartilharam suas experiências: Yane Mendes a partir do trabalho com juventudes, comunicação popular e mudanças climáticas; Vera Domingos enquanto agricultora e impactada por um megaprojeto de desenvolvimento; e Ana Santos na experiência de agricultura urbana numa favela do Rio de Janeiro. O dia terminou com a participação do grupo na reunião do movimento feminista “Ni Una Menos” de preparação para o 8 de Março.

No dia 29, fizemos uma visita à Favela Quadra 31, acompanhadas de companheiras do movimento La Garganta Poderosa. Conhecemos os comedores populares, onde as mulheres preparam e distribuem cerca de 420 refeições por dia para a população local. Também tivemos uma roda de conversa na Horta Urbana da Universidad de Buenos Aires (UBA), que fica no estacionamento da Faculdade de Medicina. Estiverem presentes cerca de 50 pessoas, entre elas estudantes do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Sem Terra (MST) brasileiros que estão atualmente estudando na UBA.

No último dia, tivemos uma reunião com o Sedi Asociación Civil | Servicio Evangélico de Diaconía, uma organização parceira que, junto de nós, integra o Grupo Feministas de Lima. O encontro teve como objetivo o estreitamento da nossa relação institucional e o planejamento de intercâmbios e ações coletivas no tema da justiça de gênero nas organizações. Por fim, nos reunimos também com Andressa Caldas, diretora executiva do Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos (IPPDH) no Mercosul, para que nossas companheiras conhecessem a organização e compartilhassem suas principais reivindicações no âmbito das violações e da proteção dos direitos das mulheres no Brasil. Nossa jornada findou com uma visita guiada ao Museu Sítio da Memória, onde funcionava um centro de tortura da ditadura militar argentina.

“Acredito que a experiência do intercâmbio fomentou bastante a metodologia de troca de expertise entre pessoas que enfrentam a desigualdade de um país. Infelizmente, vi de perto um retrato muito próximo ao do Brasil, os impactos que o sistema capitalista desigual causa nas pessoas, colocando-as em situações de máxima vulnerabilidade. Os coletivos desses territórios são obrigados a agir para, no mínimo, conter o descaso, seja com direitos básicos como alimentação, educação e saúde, ou até mesmo com a autoestima do ser humano, que nem sabe que pode pensar em seguir algum caminho que não seja o de preencher seus dias de sofrimento e esperar pela morte. Então, um retrato que muitas vezes lembrou as
ações emergenciais da rede tumulto, foi o diálogo de mulheres trazendo à tona o retrato da fome, alguns dados de desnutrição e a própria imagem das grandes filas nos comedores nas favelas, algo que observamos de perto ao acompanhar o grupo “Las Poderosas” na favela quadra 31, uma das maiores da Argentina.


Compreender o funcionamento da organização UTT e compartilhar estratégias de unificação em torno da agroecologia e do empoderamento feminino foi uma experiência verdadeiramente enriquecedora. Durante o intercâmbio, não apenas trocamos ideias e práticas, mas também testemunhamos o incansável trabalho de combate à fome e o fortalecimento do feminismo popular e a luta pelo Direito à terra. Destacou-se especialmente o diálogo entre as agricultoras nos quintais, onde não só discutiram sobre a terra, mas também sobre a força das mulheres e os desafios sociais que enfrentam. Esses momentos foram profundamente impactantes e inspiradores, mostrando como a solidariedade e a cooperação podem criar laços poderosos entre comunidades. Além disso, o intercâmbio nos proporcionou uma
valiosa reflexão sobre a valorização da alimentação e a importância do cultivo próprio. Fomos provocados a reconhecer que, muitas vezes, perdemos a noção do processo que os alimentos percorrem até chegarem às nossas mesas, especialmente quando estamos imersos na vida urbana das grandes cidades. Essa consciência renovada nos incentivou a valorizar ainda mais as práticas alimentares sustentáveis e a reconectar-nos com a terra e seus ciclos naturais.”


Yane Mendes (Rede Tumulto)


Foi uma experiência muito grande, gigante pra minha vida. Foram dias de muito aprendizado. Estar com as companheiras bolivianas e argentinas me fez refletir muito sobre a luta territorial aqui no nosso estado. São mulheres migrante da Bolívia, são mulheres argentinas, agricultoras familiares. Momentos que faltam palavras para descrever a magnitude daquele encontro. E estar ali me fez crescer muito, me deixou muito feliz. Estou nessa luta há 27 anos, dentro de um território onde todos os dias eu luto, eu resisto para estar viva. Lidero uma associação majoritariamente formada por homens, um espaço machista, racista, onde o racismo ambiental está escancarado, está claro para todos nós, pelo Complexo Industrial e Portuário de Suape, que é o grande causador de todo o racismo ambiental que nós estamos enfrentando há décadas. E agora, muito mais do que antes, ainda mais escancarado. São pessoas que foram expulsas de suas terras, tiveram a expulsão também com aval da justiça, do poder público, do poder político.

E chegando ali na Argentina a gente viu que nada é diferente. E ver majoritariamente o público feminino passando por aqueles momentos de tanto sofrimento, de tanta luta para estar existindo, me fortaleceu no sentido da luta. Me entristeceu porque as coisas só mudam de lugares, só nos deixam fora do nosso território, mas que são as mesmas formas opressoras, misóginas, racistas, machistas, que nós mulheres enfrentamos seja em qualquer parte do mundo. Isso é chocante, incomoda a gente, mas não nos desanima da luta. Isso nos deixa mais forte, nos dá mais garra para dizer que o caminho é este. Aprendi muito porque já estou na transição da agricultura familiar tradicional para a agricultura agroecológica familiar.

Hoje nós temos uma horta feminina, onde as mulheres têm vez. Hoje nós já estamos lutando de igual para também termos nossos espaços. Então, hoje nós temos uma horta comunitária só para mulheres. O nome da nossa horta é “Raízes da Resistência”, é um projeto que o Pacs também já alimenta e acompanha. Então, hoje também é um espaço feminista. A gente acredita que não existe a possibilidade de sem o feminismo haver a agroecologia, a agricultura familiar. Então, hoje é um espaço feminista, e quando eu cheguei naquele lugar também pude ver que ali tem uma sementinha do feminismo, da luta das mulheres e é um lugar que a gente sabe da história da luta das mulheres na agricultura. Não é de hoje, é um lugar que a gente sente, vê e reflete agricultura. E as mulheres são de uma valentia.

Aprendi muito no sentido de ver as mulheres no plantio, no cuidar da Terra, praticamente sozinhas. Isso me deixou muito feliz e me achei muito pequena diante do gigantismo daquelas mulheres. E saber que tudo aquilo elas fazem de uma forma muito diferente da nossa. Aqui nós temos a terra, as ferramentas, a força braçal, nós temos tudo, e muitas vezes vemos o descaso das próprias mulheres pela agricultura. Nós temos vivido isso dentro dos territórios. E lá elas alugam a terra pra plantar. Imagina o que é isso? Elas dão parte da produção como garantia. Isso me chamou muita atenção. Me deixou impactada em ver que elas pagam 60% da produção pro dono da terra. Mesmo assim, elas não desistem. São os meios de produção que elas têm e fazem uso disso com uma valentia, com uma força que passou pra nós um vigor, um regozijo, uma vontade de permanecer lutando.

Eu tenho a agricultura como a educação, a fonte de tudo. Do comer bem, do viver bem, do comer limpo, da saída pra fome, da grandeza da soberania alimentar e nutricional. Eu vi uma necessidade enorme da reforma agrária dentro do nosso país, porque não é concreta. A luta pela terra continua e tem feito o tombamento de vários companheiros de luta. Eu vivo essa questão fundiária todos os dias. Abaixo mesmo ao racismo ambiental, à misoginia, à violência no campo, à violência à agricultura urbana.

Estar naquele lugar com as companheiras da Argentina me deu um gás. Cheguei com uma vontade de lutar, de resistir ainda mais. Então, nossos projetos aqui só afloraram, e o que já era forte está mais forte.

Vera Domingos (Associação de Agricultores do Engenho Ilha).