Imaginar que a cidade mais violenta da Argentina é também uma referência em políticas públicas para a agricultura urbana parece contraditório. Mas é mesmo a dura realidade de injustiça e opressão que impulsiona trabalhadores e trabalhadoras a construírem alternativas populares de desenvolvimento local e de garantia de alimentação saudável, soberania e segurança alimentar para suas comunidades.
Rosário, localizada na província de Santa Fé, na região central do país, sediou entre os dias 12 a 16 de junho de 2023 o VII Congreso Internacional de Salud Socioambiental y IV Encuentro Intercontinental Madre Tierra una Sola Salud, com o tema “Cuidando la salud de la Madre Tierra en contextos de cambio climático”.
A convite da Fundação Rosa Luxemburgo, uma das instituições apoiadoras do Pacs, nossa coordenadora institucional Aline Lima participou do congresso e também de uma programação de visitas a experiências desenvolvidas em bairros periurbanos da cidade, onde principalmente as mulheres protagonizam iniciativas de auto organização popular, em resposta às violências cotidianas e à fome.
A andança começou pela ida aos espaços de dois parques-hortas e um centro agroecológico que integram políticas públicas de hortas comunitárias e de alimentação saudável para a população. Depois, o grupo conheceu o projeto Ciudad Sin Miedo, promovido pelo Ciudad Futura, um partido político local que nasceu como movimento social enraizado no bairro Nuevo Alberdi.
Ali se inauguraram algumas iniciativas de construção de alternativas populares de desenvolvimento territorial, de recuperação de áreas degradadas e de solução para problemas como a ausência de postos de saúde e escolas nos bairros mais periféricos.
Em Nuevo Alberdi, há uma escola comunitária mantida pelos próprios trabalhadores e trabalhadoras, um comedor (restaurante) popular – o primeiro do país, que também tem uma política pública e uma rede de comedores que garantem acesso à alimentação para parte da população que vive em insegurança alimentar – e o Tampo de la Revolución – uma fábrica de laticínios que estava abandonada e foi recuperada pelos trabalhadores e trabalhadoras.
Os laços gestados nos diálogos durante o Congresso também nos levaram à conexão com a Unión de Trabajadores y Trabajadoras de la Tierra (UTT), um movimento que reúne mais de 22 mil famílias campesinas organizadas na produção de alimentos e na luta por soberania, justiça e igualdade.
Nossa coordenadora Aline teve, então, a oportunidade de conhecer a Colônia Agroecológica Jsuregui – considerada a primeira colônia agroecológica do país, formada por centenas de produtores imigrantes bolivianos – e um dos armazéns agroecológicos da UTT, semelhantes à proposta de armazéns do campo do MST que temos no Brasil, destinada à comercialização dos agricultores e agricultoras do movimento. Participou também do lançamento do Centro de Estudios de la Tierra em parceria com movimentos sociais e a Universidade de Buenos Aires, que reúne acadêmicos, militantes e agricultores para pensar a produção de conhecimento sobre soberania e segurança alimentar, acesso aos mercados e políticas públicas para a Agroecologia.
“(Na colônia), participei de uma atividade de coleta de histórias de vida dessas mulheres agricultoras para um livro que será produzido. Trocamos muito sobre metodologias feministas, educação popular, a maneira como fazemos nossos intercâmbios e construímos nossos materiais no Pacs. Juntas, começamos a pensar em como poderíamos promover trocas de saberes entre as mulheres da UTT e as daqui, para refletir como nosso saber-fazer agroecológico tem ressonância com os processos de lá, observar os processos de enfrentamento comuns, porque temos muitas similaridades: a falta de políticas públicas, de investimento, a dificuldade de acesso a mercado, as questões de violência”, conta.
Entre essas similaridades, está o lugar da cozinha na vida das mulheres. Na caminhada do Pacs com os coletivos de agroecologia do Rio de Janeiro, vimos esse lugar ser ressignificado a partir do reconhecimento da potência da cozinha como um lugar de força e confiança entre as mulheres. A publicação “Memórias de Cozinha: mulheres e receitas insurgentes” e o documentário “Cochichos de cozinha: afeto e política na mesa” resultam desse processo.
Aline segue contando: “Durante muito tempo, sobretudo na caminhada dentro da economia feminista, a cozinha era um lugar que deveria ser superado pelas mulheres. É um caminho de volta muito importante, quando nos deparamos com as mulheres da agroecologia, que afirmam suas pequenas produções, o beneficiamento de alimentos, o cuidado com as sementes e do papel de alimentar suas famílias como um lugar precioso e de muita potência. Eu ouvi de uma agricultora que a cozinha é esse lugar precioso porque é onde os homens não entram e elas conseguem contar seus segredos. Entendi essa dimensão da cozinha enquanto trincheira de luta, lugar de proteção. Ela estava falando tudo aquilo pra gente mexendo no seu caldeirão, contando sua história e fazendo da cozinha um espaço de confiança entre mulheres. Ao mesmo tempo, ela falava do quanto era importante ter conquistado seu pedaço de terra, do qual ela não abriria mão, para conseguir plantar e produzir alimentos saudáveis para aquela comunidade. E aquilo tinha combatido boa parte da fome daquele lugar. Existe uma luta que muitas vezes é silenciosa mas muito potente. O que eu vi lá é muito próximo do que eu vejo nas comunidades daqui”.
A partir daí, logo nasceu o primeiro intercâmbio latino-americano entre a UTT e as mulheres do Centro de Integração da Serra da Misericórdia (CEM), no Complexo da Penha, zona norte do Rio. No dia 31 de julho, duas companheiras do movimento argentino vieram ao Brasil e puderam conhecer a experiência carioca. Aline explica que “foi um encontro para pensar de que maneira a gente consegue aproximar essas mulheres que vêm de uma realidade de agricultura muito indígena, que trazem essa herança, para intercambiar similaridades e diferenças da agroecologia que é feita nas favelas”.
Glória, umas visitantes, compartilha sua experiência: “Uma das coisas que mais me chamou atenção e me comoveu foi que, depois de atravessar a favela e ver o quão difícil é a vida em um espaço militarizado, um espaço de morte, praticamente, as mulheres, com seu amor e esforço, constroem vida”.
Ao mesmo tempo em que o cenário de armamento ostensivo choca quem percorre o caminho até o CEM, um novo impacto salta aos olhos ao chegar e ver a agrofloresta, lago de peixes e os quintais produtivos cuidados pelo coletivo de mulheres. As anfitriãs também ficaram muito felizes de mostrar seu trabalho para as companheiras da Argentina, tornando vivas as suas histórias e se nutrindo da força de ver a admiração das visitantes pelo que fazem. “Um trabalho incrível sendo feito numa região que é palco do genocídio da população negra e do confronto entre grupos armados”, explica Aline.
“As semelhanças que temos é a maneira agroecológica de produzir, pensando em utilizar adubos naturais, ver a importância das sementes crioulas e sobretudo o lugar central que ocupam as mulheres, onde elas são protagonistas”, complementa Glória.
O encontro foi um momento que marca o plantio de uma pequenina e ao mesmo tempo grandiosa primeira semente para fazer brotar coisas muito valiosas para as lutas dessas mulheres, a partir dessa troca de saberes e do fortalecimento mútuo entre elas.
Glória explica que as expectativas são de poder gerar novos momentos de intercâmbio entre as companheiras do CEM e as mulheres da UTT, para que possam “conhecer e intercambiar experiências, conhecimentos e potencializar todo esse movimento pela agroecologia, pelo cuidado com a vida, de pensar na elaboração e no consumo de alimentos sadios, onde os saberes ancestrais também sejam chave para aprofundar a luta por soberania alimentar”.