Entre 22 de outubro e 8 de novembro de 2024, uma parceria entre o Instituto PACS, do Brasil, o Grupo de Mulheres de Partilha de Ideias de Sofala (GMPIS), de Moçambique, a organização Mwana Pwo, de Angola e a agência Pão Para o Mundo, da Alemanha, tornou possível um grande intercâmbio entre esses e outros grupos em Moçambique, durante a realização do “Acampamento Solidário de Intercâmbio Mulheres do Brasil, Angola e Moçambique construindo pontes na luta por direitos das mulheres”, organizado pelo GMPIS.
O intercâmbio tem raízes em outros dois momentos: o Encontro Panafricano de Consulta sobre Gênero, realizado no Togo em 2022 e o II Encontro de PPM e Copartes Latinoamericanas Sobre Estratégias Para a Igualdade de Gênero no Enfrentamento aos Fundamentalismos e em Defesa da Democracia, realizado em Pernambuco, no Brasil, em 2023. Dessas trocas, surge o sonho e a proposta de realização do intercâmbio em Moçambique com participação das delegações do Brasil e de Angola, cada uma com 4 mulheres.
No período do intercâmbio, vivenciamos um contexto de grande mobilização no cotidiano moçambicano. As eleições presidenciais, que aconteceram em 9 de outubro, resultaram na vitória declarada pelo Conselho Nacional para Daniel Chapo, da Frente de Libertação de Moçambique, a FRELIMO. A oposição, representada pelo candidato Venâncio Mondlane, do Povo Otimista para o Desenvolvimento de Moçambique (PODEMOS), denunciou a existência de fraudes eleitorais e fomentou a realização de manifestações pelo país, que resultaram em uma greve geral. As denúncias são de uso de violência extrema pelo governo contra os manifestantes, incluindo crianças e mulheres.
A FRELIMO governa o país desde a conquista da independência de Portugal, em 1975 e é conhecido como um partido de orientação marxista. O representante do PODEMOS nas eleições já manifestou apoio a figuras políticas como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Moçambique vive ainda um momento de muita instabilidade e violência, mesmo com a posse de Daniel Chapo no dia 15 de janeiro. São inúmeras as nuances desse conflito e são muitos os pontos próximos a situações que vivemos no Brasil. Esse contexto marcou a realização do intercâmbio. Uma vivência atravessada pela tensão de um ambiente instável e pelo esforço coletivo de compreender e lidar com o que se passava no país.
Na delegação do Brasil, contamos com Aline Lima e Yasmin Bitencourt do Instituto PACS, do Rio de Janeiro, Gilmara Santana, da Rede Tumulto, de Recife - PE e Luiza Cavalcante, do Sítio Ágatha, de Tracunhaém - PE. Para Aline, Gilmara e Luiza, essa foi a primeira vez que pisaram em território africano. É a partir dos olhares e das vozes dessas 4 mulheres, que contamos um pouco dessa fértil experiência.
Aline e Yasmin chegaram antes ao país, no dia 22 de outubro e junto de Ivete, do GMPIS, organizaram as logísticas para a chegada das companheiras de Angola e do Brasil, que chegariam depois. Em 26 de outubro chegaram Luiza e Gilmara, assim como a delegação angolana. No dia 27, as trocas se deram em uma visita guiada, em Maputo, em que conheceram lugares históricos e uma feira onde tiveram contato com a variedade da culinária local. Pela noite, já se deslocaram para Beira, onde foi realizado o Acampamento Mundo das Mulheres.
Um primeiro momento importante em Beira, no dia 28 de outubro foi a reunião com o Ministério Gênero, Crianças e Ação Social, da província de Sofala, onde foi apresentado um panorama das questões de gênero em Beira. Essa articulação foi especialmente importante, considerando a segurança e a legitimidade da equipe no contexto de crise política e greve geral. Ainda nesse dia, visitaram a sede do GMPIS, foi um momento de acolhimento, de conhecer as organizações envolvidas no acampamento e de realizar a roda de conversa “Auto organização e luta das mulheres”. A roda foi especialmente importante porque foi um primeiro momento de aproximação e apresentação entre os grupos de Brasil e Angola com as mulheres da base de Moçambique. Compartilhamos perspectivas de luta em contextos eleitorais, em nossas organizações e movimentos, assim como abordagens de educação popular e pesquisa com jovens e meninas.
No dia 29/10 foi realizada a visita territorial a Nhangau, onde existe um núcleo do grupo com mulheres, meninas e mais velhas. Conheceram o território, a cooperativa dirigida por mulheres, os locais de produção de alimentos e a loja em que comercializam. Realizaram uma roda de conversa na qual passaram por temas como: agroecologia, beneficiamento de alimentos, receitas tradicionais, soberania alimentar e empreendimentos de mulheres. Além disso, abordaram os temas do letramento, o papel dos homens no combate à violência de gênero e a educação popular no campo e na cidade.
Seguindo em caravana, no dia 30/10, estiveram no Lançamento do Observatório sobre o Feminicídio, com representantes de organizações da sociedade civil e do governo. O estudo mostrou dados sobre feminicídio em Manica e Sofala. As participantes do intercâmbio fizeram falas sobre estratégias de enfrentamento à violência contra a mulher e da importância do protagonismo das mulheres nessas pesquisas.
A próxima parada foi em Dondo, no dia 31/10, com uma visita ao núcleo do GMPIS deste território, também caracterizado por Mulheres e Meninas e mais velhas dali e a continuidade do processo de organização para o acampamento. Nesse momento, mais um tema importante apareceu nas trocas: os direitos das mulheres Lésbicas, Bissexuais e Transsexuais (LBTs). Essa é uma temática de interesse central em relação às mulheres da delegação brasileira e, ao mesmo tempo, desafiadora, pelas diferentes perspectivas presentes, em diálogo com os cenários nacionais. Durante a roda de conversa foram muitas as trocas, com o objetivo desafiador de promover um debate intergeracional sobre o tema. “Em Dondo, entramos numa casinha pequenininha. Estava chovendo, então ficamos todas juntas. Éramos muitas. Todas queriam nos conhecer, saber como é aqui no Brasil. Fiquei tomada pela conversa, falamos sobre ser LBT e as mais velhas estavam na roda pra ouvir, com abertura, mas também com firmeza em compartilhar suas perspectivas e realidades”, nas palavras de Yasmin.
Entre os dias 01 e 02/11 aconteceu o “Acampamento Solidário de Intercâmbio Mulheres do Brasil, Angola e Moçambique construindo pontes na luta por direitos das mulheres”, um espaço rico e fértil em que as mulheres vivenciaram as trocas de forma intensa e cotidiana. Entre os encantos da delegação brasileira, os cantos e danças tomaram um lugar muito especial. Uma fogueira realizada ao final do primeiro dia foi um dos momentos mais marcantes da visita. Nos diálogos e trocas ao redor da fogueira, deixavam para o fogo, produzido e alimentado pelas mulheres, a função de queimar os preconceitos e as opressões ainda reproduzidas.
O acampamento é uma metodologia estratégica do GMPIS para reunir as mulheres, debater sobre os temas de trabalho e elaborar posicionamentos comuns. Uma das dimensões importantes de trocas com a visita a Moçambique foi a possibilidade de conhecer essa metodologia. A delegação brasileira se impressionou com a capacidade de mobilização a nível nacional, pois tinham mulheres de todo o país no evento, mesmo com o contexto instável e dificuldades financeiras. Foram necessárias muitas adaptações no encontro, tendo em vista o contexto, o que prejudicou em alguns aspectos a sua realização.
Alguns destaques da metodologia do acampamento foram: as rodas de conversas em plenária; os momentos de dança e preparo dos alimentos de forma coletiva; os grupos de debates por temas e a elaboração de uma declaração oficial do acampamento. Além das delegações do Brasil e Angola, estiveram presentes autoridades públicas e representantes de outras organizações de Moçambique.
“Todos os momentos que chegava nos lugares, ouvia elas cantarem as músicas. Uma delas significava ‘nós estávamos desde ontem esperando a chegada de vocês’. Cantavam nas línguas locais”. Esse é um trecho do relato de Gilmara Santana, que traz vida a uma dimensão muito citada no processo avaliativo da delegação do Brasil: o sentimento de acolhida e carinho das mulheres de Moçambique e de Angola. Junto disso, uma admiração grande pelo Brasil, o que reforçou nas brasileiras a importância de nossas lutas e conquistas, mesmo com todas as desigualdades ainda muito enraizadas aqui.
“Foi um encontro com a Ancestralidade, estava tomada de emoção”, nos conta Luiza Cavalcante sobre a chegada ao continente africano e a Moçambique. Emoção compartilhada com Gilmara, que chegou junto com ela. Luiza destacou também a intimidade com a força das árvores. “As árvores antigas me chamavam, o recôncavo das árvores me chamavam. Eu era elas e elas eram eu”.
Ao longo das andanças, os sentimentos transmutam, por exemplo, a partir da percepção de uma, já sabida, grande desigualdade presente no país e no continente. Percebida em alguns espaços visitados e escutada pelas vozes das mulheres que as acolheram. São os desafios de uma herança colonial que aproxima muito Brasil e Moçambique; América Latina e África. E, ao mesmo tempo, de distâncias marcadas pelas especificidades sociais, do processo de colonização e da localização geográfica de cada território. Nos relatos da delegação brasileira tem destaque a riqueza das trocas, a abertura em debates intergeracionais, mesmo com muitas diferenças. Mais que muitas violências e opressões em comum, a tônica desses intercâmbios foi a potência do encontro, das pequenas revoluções dos espaços de troca de saberes e práticas de mulheres africanas e amefricanas.
São nessas distâncias e proximidades que, de forma unânime, se ouvia, com diferentes palavras, no processo avaliativo: “queremos e precisamos voltar ao continente africano”. Desde o encontro de mulheres no Togo, alimentado no intercâmbio no Brasil e agora em Moçambique, se desenha um caminho cuidadosamente cultivado de confluências férteis entre América Latina e África. Reencontro. Continuidade. Admiração. Espanto. Sonhos. Distâncias. Reflexão. Axé. Palavras que circulam e sentimentos que acompanham as travessias, as idas e vindas de sentidos e forças da diáspora africana.