Entrevista realizada em 12 de julho de 2021
Fotos: Reprodução / MTST
Em mais de 1 ano e meio de pandemia, não é só o terrível cenário da Covid-19 que afeta o cotidiano da população. Além dos atrasos nas vacinas, a dificuldade em obter o auxílio emergencial, o desemprego, a escassez de água e a violência, mais de 19 milhões de pessoas estão em situação de fome e insegurança alimentar, o que afeta principalmente os territórios periféricos e favelados do campo e da cidade, as populações negras, indígenas e e outras comunidades tradicionais. Através de alternativas populares e estratégias coletivas de autogestão, movimentos sociais, coletivos e grupos resistem, enfrentam e transformam essa realidade.
O Plano Popular Alternativo ao Desenvolvimento (PPAD) traz a série Autogestão na Pandemia, com quatro entrevistas de coletivos, grupos e movimentos sociais que fazem parte do Coletivo Autogestão, criado a partir do Curso Autogestão, promovido anualmente pelo Instituto Pacs. A primeira é uma conversa com Janja Silva, coordenadora estadual do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) de Pernambuco. O MTST é um movimento que organiza trabalhadores e trabalhadoras na luta por terra, território e moradia. Uma das estratégias do movimento durante a pandemia tem sido a construção de mais de 20 cozinhas solidárias ao redor do país, a partir de doações e arrecadações de alimentos.
O material foi produzido por Isabelle Rodrigues, Aline Lima, Yasmin Bitencourt e Rafaela Dornelas, que fazem parte da equipe do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs).
Instituto Pacs: Com o que o seu movimento atua e qual a sua participação nele?
Janja: O Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto de Pernambuco (MTST-PE) atua na questão da moradia e outros temas que possibilitam a melhoria da vida das pessoas nas comunidades. Na pandemia, estamos ajudando as comunidades e ocupações do movimento e agora temos uma nova cozinha solidária. Também temos um novo território, a Vila Santa Luzia, que é um espaço que estava abandonado há mais de dez anos e resolvemos ocupar e construir a cozinha para que essa comunidade tenha alimentos diariamente. Todos os dias distribuímos 200 quentinhas, possibilitando o almoço e jantar para esse território, e quando recebemos doações de outras coisas nós fazemos a distribuição lá também. Eu sou moradora dessa ocupação no bairro do Jiquiá, no Recife e ajudo as pessoas da comunidade. Essas atividades são essenciais para aqueles que estão desempregados e passando por dificuldades, pois várias localidades estão vivendo o duro processo do desemprego provocado pela pandemia. Fazemos a distribuição de cestas básicas, álcool em gel, máscaras e produtos orgânicos que as ONGs que reconhecem a luta do MTST doam. A demanda é muito grande e são muitas comunidades passando por dificuldades e com isso tentamos abranger tanto as comunidades que já atuamos, mas incluindo outras também.
Instituto Pacs: Qual é o perfil geral dos integrantes do MTST?
Janja: A maioria são mulheres, mães solo que cuidam dos filhos e da casa e fazem parte da luta. O perfil geral é o protagonismo das mulheres, que estão envolvidas com todas as questões, presentes nas atividades, querendo ajudar. Alguns homens da brigada também ajudam no processo da organização da cozinha solidária. Mas as mulheres são as mais atuantes.
Instituto Pacs: Como você sentiu os impactos dessa pandemia?
Eu entrei em um processo de depressão na pandemia, por não estar mais em atividades presenciais, já que estava acostumada a estar na luta diariamente, visitar as comunidades - porque atuo no setor de organização e de agroecologia do movimento, levar o trabalho da agricultura urbana para os espaços das ocupações e trabalhar com mulheres, homens e crianças. Comecei esse processo para termos um espaço coletivo para trabalhar com as mulheres da ocupação, porque elas não podiam trabalhar durante a pandemia, não apareciam serviços de faxina e elas ficavam em casa sobrecarregadas com os serviços do lar. Vendo as notícias ruins e ficando em casa, eu acabei desenvolvendo um pânico e muita preocupação com nossas famílias e com os outros moradores das ocupações. Nós tivemos perdas de moradores para o COVID-19. Esse espaço coletivo existe para que nós possamos nos envolver e falar sobre alimentação, a importância de ter um espaço para produzirmos nosso alimento e não passarmos por tantas dificuldades, além de ser uma oportunidade de rodas de diálogos entre nós, para sabermos o que as mulheres estão passando e como está sendo a vida na pandemia. Elas vão para lá fazer atividades, levam as crianças para aprenderem a mexer na terra, brincar, aprender a mexer com as sementes, entenderem o que podemos fazer com o processo de desenvolvimento da horta. Quando comecei a conversar com as moradoras, descobri que tinham muitas que também estavam deprimidas… Elas agradeceram muito que construímos esse novo espaço e conseguiram ocupar a mente com essas novas atividades. Nós rimos e trabalhamos muito também. O que eu posso fazer para ajudá-las, eu faço. Tanto elas quanto todos da comunidade recebem doações de feiras orgânicas e isso é importante para entender o valor do alimento orgânico, sem agrotóxicos. E com o projeto da cozinha solidária, queremos fazer uma horta atrás do espaço e chamar os moradores da comunidade para participar das atividades de agroecologia. Hoje, dou graças a Deus por estar nesse espaço que vem me ajudando muito com a depressão e tristeza profunda que estava sentindo e que me abateu muito, sentia muita falta do calor humano e de estar envolvida no meio do povo, de poder conversar e abraçar. Nós aumentamos as reuniões online, mas sentimos falta de ver um companheiro e uma companheira ao vivo e saber que estão bem. Dá um acalento no coração ver esse espaço e os companheiros que faz tempo que não encontramos.
Instituto Pacs: Como essa realidade impactou o seu território?
Janja: Impactou bastante, nós nunca tínhamos passado por um processo desses… Minha avó já está com 83 anos e nunca relatou uma história na trajetória dela semelhante a isso que estamos vivendo. Ela continua isolada mesmo que tenha sido vacinada. Nas comunidades, fomos muito afetados pelo desemprego porque as pessoas do comércio informal não puderam trabalhar por causa do isolamento e ainda com as crianças sem aula. Como ficar em casa se você mora em um barraco que é só um vão? As mães às vezes têm três, quatro filhos e ficam durante 24h com eles dentro de casa… Minha irmã é moradora da ocupação, os filhos dela são pequenos, sempre brincaram na rua e ela teve que isolar eles dentro de casa… As crianças também foram impactadas por essa pandemia, passaram por crises de ansiedade e nervosismo, apenas assistindo televisão e usando jogos e lápis de cor para se distraírem. Muitas pessoas foram afetadas, tanto psicologicamente quanto financeiramente. A tristeza de também saber que alguém faleceu por COVID-19 abala muito as pessoas. Aqui na comunidade, uma mãe solo que morava com duas crianças faleceu de COVID-19 e os filhos passaram a morar com a avó, que também não estava em uma boa situação porque já criava um dos netos. As crianças vão crescer sem a mãe. É um processo muito difícil que estamos passando, muitas coisas ruins acontecendo, mas temos as pessoas voluntárias que dão uma fortalecida na comunidade com a distribuição das cestas básicas. Nós também fizemos mutirão de saúde para falar sobre a COVID-19 com o pessoal da UFPE, conscientizando a comunidade de sempre estar de máscara, da organização em casa, da higiene dos objetos e do distanciamento social.
Instituto Pacs: O que você destacaria como principais estratégias que vocês tomaram coletivamente para ajudar uns aos outros?
Janja: Tivemos reuniões online com companheiros de ONGs que estavam querendo ajudar o movimento durante a pandemia. Durante essas reuniões, nós definimos os territórios que poderíamos ajudar, o que poderíamos atingir em outras comunidades que pudéssemos ajudar dependendo da quantidade de doações. Recebemos doações de máscaras e álcool em gel. Pedimos às pessoas que tivessem riscos de saúde que não saíssem de casa e quem não tivesse, que pudesse ir às comunidades fazer as distribuições com todo o cuidado e distanciamento. Acredito que as pessoas da comunidade são muito agradecidas por isso que o movimento vem fazendo não só aqui no Recife, mas também em outros estados em que o MTST atua. Vimos com o decorrer do tempo as necessidades das pessoas da comunidade, o que elas precisavam e como poderíamos ajudar. Tivemos um grupo de psicólogos que pudessem ajudar quem tivesse necessidade por meio de consultas online e também tivemos mutirões de saúde em outras comunidades para ajudar a informar mais sobre a pandemia. Foram reuniões com várias ONGs, coletivos, com o PACS… O que mais apareceu foram as reuniões online. E também tivemos o aumento dos preços dos alimentos, do gás… As pessoas sofrendo com isso tudo, falta de emprego… Só aconteceram coisas que dificultaram a vida das pessoas que vivem em comunidades e esse governo não fez nada para ajudar.
Instituto Pacs: E como funciona a cozinha solidária? Você vai todos os dias?
Janja: No início, eu ia todos os dias, mas foi estabelecido que fica nas mãos das companheiras que estão cozinhando. Tem dias que vou para ajudar na cozinha, tem outras mulheres daqui e de outros territórios que também querem ajudar. Nós temos uma escala para que cada ocupação possa chegar e fortalecer o espaço. Eu também faço o trabalho na horta e na cozinha. Nós recebemos gás, que veio por meio do sindicato dos petroleiros; os alimentos são doados pelos movimentos e ONGs. A cozinha vive por base de doações para poder ajudar todos daquela comunidade.
Instituto Pacs: Como está o processo de recolhimento de doações?
Janja: O MTST tem uma vaquinha para que possamos ajudar as comunidades. Basta ir nas redes sociais e acessar como fazer para ajudar. O recolhimento dos recursos é para ajudar as pessoas nas comunidades, para o desenvolvimento da cozinha… Para a entrega de alimentos, é só falar com a página do MTST que organiza o recebimento e as informações de entrega. Temos recebido bastante doações, mas às vezes a demanda mensal ou semanal não supre totalmente. Nós tivemos a cozinha arrombada e levaram alguns alimentos, inclusive carnes, panelas, caldeirões, eletrodomésticos… Muita gente doou novamente os utensílios e alimentos. O pix segue circulando para a gente continuar com as atividades da cozinha (veja o pix ao final da entrevista). É importante porque conseguimos atingir um raio maior de pessoas que podem ajudar na alimentação dessas comunidades. Nesse território, nós conseguimos prover a alimentação de 200 pessoas e se conseguirmos mais recursos, aumentaremos a quantidade de pessoas que acessam o alimento.
Instituto Pacs: Além da cozinha, vocês continuam trabalhando com a distribuição de máscaras e álcool em gel?
Janja: Nessa segunda etapa da pandemia de 2021, nós não fizemos distribuição de máscaras porque as mulheres costureiras que estavam confeccionando antes estavam trabalhando com editais e recebendo recursos para confeccionar e distribuir. Mas agora não estamos mais distribuindo. Tínhamos ganhado uma leva de álcool da faculdade que distribuímos, mas não vai durar o resto da pandemia, então as pessoas estão comprando o álcool para elas mesmas para se prevenir. Nesse momento, nós estamos ajudando as comunidades com o processo de vacinação contra a COVID-19 porque muita gente não sabe mexer nos aplicativos para poder agendar a data da vacina. Na comunidade onde eu moro tem uma associação do bairro que faz uma declaração de moradia, mas tem muitas ocupações que não têm como emitir o comprovante, dificultando o acesso àa vacina para essas pessoas. Faço parte do grupo de saúde, cadastrando os moradores das ocupações para que eles possam ter acesso ao posto de saúde, porque se não fizesse esse cadastro ninguém teria acesso. Nós vamos ver como faremos para esses moradores descobertos tomarem a vacina.
Instituto Pacs: O local de vacinação é longe da sua comunidade?
Janja: Como nós conseguimos agendar, escolhemos o local mais próximo para tomar a vacina. Ouvi falar que a prefeitura ou o governo pagam o Uber para as pessoas tomarem a vacina. Eu não peguei porque quando fui, minha irmã e minhas duas tias foram junto comigo para tomar a primeira dose. Nós temos os grupos de WhatsApp de cada comunidade para poder trocar essas informações importantes, organizações de atos… Tem uma companheira que se disponibilizou a pegar o nome das pessoas que querem fazer o cadastro para tomar a vacina. Estamos ajudando uns aos outros para agendar a vacinação.
Instituto Pacs: Com essas estratégias de acolhimento e ajuda de todos, o que vocês esperam daqui para frente para a comunidade, para o coletivo e para a vida das pessoas?
Janja: Espero que todas as pessoas consigam ser vacinadas para que a gente possa continuar lutando pelos nossos direitos de ter uma ocupação e moradia. Espero que, com tudo que está acontecendo, as pessoas se conscientizem que a luta não vai parar e que ainda temos muito para continuar. Ano que vem temos eleições presidenciais e espero que votem conscientemente, para não acontecer o que aconteceu com essa representação desse presidente e hoje se arrependerem ao ver o que ele está fazendo. Espero que todo mundo tenha esperança e fé para que tudo melhore. Nós seguimos na luta, pretendemos fazer uma nova ocupação em outro território. Estamos analisando o processo, vendo como vai ser essa construção, com cuidado por conta da pandemia, com muita cautela… Pretendemos continuar ajudando os territórios, seguir fazendo o possível, mas também seguir lutando sem desistir. Tem muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo e se ficarmos em casa sem reagir, as coisas vão nos atropelar. Temos que lutar. Não podemos deixar tudo isso acontecer, temos que sair de casa e reivindicar nossos direitos, mostrar que não queremos esse modelo de país que eles estão querendo fazer. Nós somos os mais afetados por essas decisões que eles tomam sem a consulta popular. Nós temos que meter a cara, fazer atos, protestos, porque se eles estão aproveitando a pandemia para fazer essas mudanças, que sejam mudanças que nos ajude, que valorize as comunidades.
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