CARAVANAS

Quando falamos em racismos, no Brasil, dialogamos com uma fundação construída no encontro colonial, na invasão europeia, no processo de colonização e racialização dos povos. Povos indígenas que já estavam aqui e pessoas negras sequestradas em África, massacradas, expulsas de seus territórios, escravizadas e submetidas à condição de inferioridade, como povos sem alma, sem deus, mas como donos. O retorno à reflexão sobre a invasão de nossos territórios a partir do século XVI nos ajuda também a entender o que chamamos racismos religiosos.

A demonização e proibição de práticas religiosas negras e indígenas se apresentam como um braço forte da dominação dos povos nesse território. A catequização a partir da religião cristã e as punições às praticantes de outras religiosidades fizeram parte do amplo repertório de violências coloniais. Enfraquecimento e submissão dos povos pela criminalização de suas fés, de seus deuses e deusas. Essas práticas de ódio e discriminação são profundamente marcadas pela racialização, direcionadas às pessoas e povos não brancos. Mesmo com a mudança na matriz de poder, após o fim da colonização oficial, segue forte a estratégia de dominação pela imposição de determinadas práticas religiosas.

É nesse sentido que falamos em racismos religiosos. Eles se expressam, principalmente, na ideia de inferiorização de pessoas não brancas, assim como todas outras formas de racismo. Assim, o que surge a partir dessas pessoas e suas coletividades é tido como “demoníaco”, “do mal”, entre outros adjetivos pejorativos. São muitos os casos em que territórios e pessoas de religiosidades africanas, indígenas ou ciganas são atacadas como se fossem um mal a ser combatido. Essa ideia tem relação próxima com os fundamentalismos religiosos. Chamamos fundamentalismos religiosos as ações baseadas na ideia de que a verdade de seu grupo religioso, ou de sua igreja, é a única que possui legitimidade. Todas as outras formas de viver, a partir de outras perspectivas, são invalidadas e/ou criminalizadas.

O Instituto PACS, historicamente, tem por foco de trabalho, com base nos territórios, em temas como a economia política, as lutas das mulheres, os impactos dos megaprojetos do chamado “desenvolvimento”, o fortalecimento das lutas populares e a perspectiva antirracista. É em diálogo com essas temáticas que aprofundamos no campo dos racismos religiosos, como um pilar importante dos processos de violências e opressões contra as quais lutamos. O que hoje entendemos como modelo de desenvolvimento hegemônico, vem formando suas bases desde o processo de colonização. Destacamos duas características fundantes: trata-se de um modelo que inclui, necessariamente, a superexploração do trabalho da mulher; e que demanda a apropriação de territórios, principalmente os que são ocupados historicamente por pessoas negras e indígenas.

No modelo hegemônico de desenvolvimento, existe um trabalho invisível, do cuidado e da reprodução da vida, que é realizado pelas mulheres em seus lares. Para que os, assim reconhecidos, trabalhadores se alimentem, tenham suas roupas lavadas, seus filhos e filhas cuidados, sua casa limpa, sua saúde cuidada, entre muitas outras formas de manutenção da vida, é necessário que uma mulher execute trabalhos não pagos. O patriarcado é parte importante da forma que entendemos como desenvolvimento. E os fundamentalismos cristãos reforçam o machismo, o controle e a violência sobre os corpos e a vida das mulheres.

Outro aspecto da lógica desenvolvimentista é a apropriação de territórios. Não dizemos de quaisquer territórios. Desde o período da colonização, o processo de catequização e criminalização da cultura e modo de vida dos povos negros e indígenas são parte fundamental da viabilização de apropriação de seus territórios. A perspectiva da verdade cristã como a única e legítima favoreceu e favorece o despertencimento ao território, a inferiorização das culturas dos povos, para que se facilite o processo de apropriação.


Os territórios se organizam, criam, constroem, respiram e contam nas suas próprias histórias. As histórias de quem nunca teve o privilégio de parar.

Nessa trajetória de luta anticapitalista e pela integração dos povos, foram muitos os atravessamentos com o tema dos racismos e fundamentalismos religiosos. Existe uma relação necessária entre o próprio sistema capitalista e a ideia de uma verdade única religiosa. As perspectivas de mundo e religiosidades dos povos negros e indígenas sempre foram criminalizadas pelas elites e autoridades. O modelo de desenvolvimento hegemônico é fundante da lógica capitalista e se vale de premissas racistas e fundamentalistas para seus avanços.

Ao mesmo tempo, nossa história é composta por grupos ligados às igrejas cristãs, que eram e seguem sendo fundamentais para a luta democrática no Brasil e na América Latina. São coletividades que, a partir dos ensinamentos da fé cristã, se colocam a serviço dos povos, suas lutas pela vida e por um mundo mais justo. É importante ressaltar a diversidade de perspectivas dentro do cristianismo, para que possamos também reforçar que quando falamos em racismos e fundamentalismos religiosos não dizemos das religiões em si, mas de grupos que reivindicam lugar de portadores da verdade única e se valem dessa posição para a perpetuação de inúmeras violências contra os que são diferentes em seus modos de vida e crenças.

Em 2020 construímos, junto a outras coletividades, a Campanha Tire os Fundamentalismos do Caminho: pela vida das mulheres. A campanha teve como objetivo alertar a sociedade sobre os avanços dos fundamentalismos no Brasil e o risco que representam à vida das mulheres. Nesse sentido, buscou também afirmar a importância da pluralidade de crenças e apontar para caminhos e práticas de uma cultura de paz, de respeito e de valorização da diversidade. Esse foi um momento muito importante para o processo de articulação ampla em torno do tema e internamente para o PACS. O tema da campanha se ligava diretamente a nosso campo de trabalho junto às mulheres e de combate aos racismos.

Desses caminhos, após a pandemia, em um momento de retorno aos encontros e abraços presenciais, começamos a construir uma proposta metodológica de intercâmbios e outras ações nesse campo. A Caravana Contra os Racismos Religiosos é uma ação coletiva, proposta pelo Instituto PACS, que busca percorrer Territórios de Fé em nosso país, de diversas religiões e religiosidades, com o objetivo de promover encontros e trocas, no sentido do combate às diferentes formas pelas quais se expressa o racismo religioso. A Caravana, nesse momento, abrange 4 estados: Bahia (BA), Minas Gerais (MG), Rio de Janeiro (RJ) e Pernambuco (PE). Nesses estados, estamos em rede com organizações, movimentos sociais e coletividades religiosas de matrizes africanas, indígenas, ciganas e cristãs. Nosso objetivo central é criar esse espaço circular em que possamos construir um mundo em que a nossa fé se encontre na luta contra as inúmeras violências pelas quais passamos. Que as nossas fés não se anulem nem se destruam. Que a perspectiva racista sobre as crenças de cada pessoa ou grupo seja combatida e não nos impeça de respeitar e saudar a diversidade religiosa.

No contexto da Caravana, produzimos o documentário “Territórios de Fé: Resistências aos fundamentalismos”. O documentário apresenta a sistematização de uma jornada a que chamamos de Pré-Caravana, que conta sobre a passagem por quatro estados: Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, em visitas de intercâmbios com comunidades e terreiros de religiosidades de matriz africana, escutando e aprendendo com lideranças que protagonizam resistências às violências.

Nessas andanças, nos juntamos a coletividades que toparam construir juntas essa Caravana, são elas: No Rio de Janeiro, o Jardim das Ervas Sagradas; Em Pernambuco, o Terreiro das Salinas; Na Bahia, a Koinonia e o Terreiro Abassá de Ogum; e em Minas Gerais o Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango, a Casa Pai Jacob do Oriente e o Quilombo Souza. Além dessas, ao longo do caminho, seguimos construindo pontes junto a grupos quilombolas, indígenas, de terreiro, cristãos, ciganos, entre outros, da enorme diversidade de religiosidades em nosso território.

Quer apoiar a Caravana? É possível acompanhar pelas redes sociais, partilhar nossos materiais ou fazer contato com o Instituto PACS pra saber mais sobre os intercâmbios ou pra organizar atividades locais a partir dos conteúdos e materiais que estamos construindo desde o início da Caravana.