Atividades territoriais e intercâmbios culturais entre movimentos sociais e coletivos marcam edição de 2021 do Curso Autogestão

Durante a pandemia, não é apenas o enfrentamento ao vírus da Covid-19 que impacta o dia a dia das populações periféricas. Em tempos de uma política de morte, descaso e negligência em todos os âmbitos, os coletivos e movimentos sociais, mais que nunca, reinventam a vida através da autogestão. Os territórios se organizam, criam, constroem, respiram e contam as histórias de quem nunca teve o privilégio de parar. O conceito de autogestão consiste na organização e na gestão de espaços de produção e convívio por todos os integrantes envolvidos no processo, de forma horizontal e sem hierarquias.

Esta é a pauta discutida anualmente no Curso Autogestão, promovido pelo Instituto Pacs desde 2015. Por conta da pandemia, este é o segundo ano consecutivo em que o curso não é realizado na sua metodologia original, que traz uma proposta de imersão aos participantes. Ao longo da sua existência, a formação já recebeu mais de 35 movimentos sociais de todo o Brasil, que compartilharam histórias de aquilombamento, aldeiamento, comunitarismo, assentamento, coletivização, cooperativização, feminismos comunitários e territorialidade como aposta de transformação histórica e social.

Por conta do isolamento social, durante os anos de 2020 e 2021 o Instituto Pacs atuou em parceria com o Coletivo Autogestão, formado por grupos, coletivos e movimentos sociais que fazem parte do curso, na produção de atividades territoriais de mobilização e comunicação populares, arrecadações e distribuições de cestas básicas e materiais de higiene, além de oficinas, rodas de conversa, intercâmbios e produções de conteúdos audiovisuais em diferentes estados como Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco, o que consistiu na edição deste ano do Curso Autogestão.

Ao longo do processo, o curso é ainda um espaço de construção coletiva do Plano Popular Alternativo ao Desenvolvimento (PPAD), um plano popular que traz as experiências territoriais de coletivos, grupos e movimentos sociais de todas as regiões do Brasil em uma plataforma virtual colaborativa. Este é um instrumento que visa potencializar, subsidiar, visibilizar e articular alternativas populares e territoriais já existentes. Tais alternativas pautam, de baixo para cima, práticas e visões de mundo desde os seus territórios, suas formas de vida, relações sociais, econômicas, políticas e culturais.

No PPAD, é possível encontrar práticas autogestionárias em agroecologia, agricultura urbana, feminismos, lutas antirracistas, educação e comunicação popular, luta pela terra e pelas águas, economia solidária, arte, cultura e muito mais. A plataforma traz vídeos, fotos, podcasts, reportagens, notícias, artigos, publicações, uma linha do tempo que resgata a memória do processo e um mapa com todos os movimentos, grupos e coletivos que fazem parte.

Foi decidido no ano de 2021 por fazer ações descentralizadas com os coletivos do curso como uma maneira de fomentar a auto organização e formação política dos mesmos. Essas ações contemplaram 120 pessoas em 4 territórios brasileiros.

Confira algumas atividades:

Bahia: agricultura familiar, saberes ancestrais e luta pela terra com o MSTB e a Teia dos Povos 

As atividades na Bahia foram realizadas em parceria com o MSTB e a Teia dos Povos da Bahia, onde reunida uma coletividade de 15 mulheres de cinco ocupações do MSTB de Salvador, com momentos de imersão no assentamento Terra Vista, em Arataca, que é a dez horas da capital. O intuito foi conhecer melhor a história do assentamento e a luta dos povos da região, além das formas de garantia da sustentabilidade dos moradores e moradoras assentados. “Vai desde a bioconstrução, passando pela existência de fábricas de produtos feitos a partir de práticas da agricultura familiar, agrofloresta e agroecologia como ponto insurgente de luta que sustenta a comunidade”, relata Aline Lima, coordenadora do Instituto Pacs. 

Foi realizada ainda uma aula de agrofloresta abordando grande parte das espécies da ocupação, além de uma visita à fábrica de chocolate e ao laboratório de óleos essenciais. De acordo com ela, a maior riqueza da atividade foi a oportunidade das mulheres terem uma vivência sobre agroecologia e o cultivo da terra a partir da ideia de educação e saúde. “Existe dentro desse assentamento um coletivo que pensa a saúde coletiva popular através das plantas e ervas medicinais, então é uma comunidade muito integrada, que pensa nesses temas a partir da própria vivência do movimento”, complementa Aline. 

Essa atividade, dentre outras, marca a volta gradual das atividades presenciais em um contexto em que as pessoas estão vacinadas e seguem respeitando os protocolos recomendados para o combate à pandemia. “Foi um grande exercício para nós entender como conseguir retomar as nossas atividades e o que seria possível depois de tanto tempo dentro de casa, nas telas, fazendo reunião à distância, sem poder se encontrar, tocar e trocar. Quem está nos territórios nunca parou de estar em ação contra a pandemia, contra as desigualdades e esse modelo capitalista que mata todo dia. Então, o nosso exercício coletivo com as lideranças foi justamente entender como a gente poderia fortalecer essas práticas sem colocar em risco a saúde de todes”, pontuou Yasmin Bitencourt, educadora popular do Instituto Pacs. 

A atividade de intercâmbio contou também com uma roda de conversa com as mulheres da ocupação Paraíso, da qual as famílias irão sair em janeiro, quando irão morar nos apartamentos do condomínio do “Minha Casa Minha Vida” ao lado da ocupação, na periferia de Salvador. Dessa forma, foram pensadas estratégias de práticas de agricultura urbana que possam gerar alimentos saudáveis para aquelas pessoas, bem como emprego e renda. Para Yasmin, essa é uma maneira de promover uma troca de conhecimentos e possibilidades entre territórios. “A nossa leitura política é que de fato esses momentos são capazes de trazer esperança e revigorar as vivências e práticas ancestrais daquelas mulheres. A gente aposta nessa estratégia e metodologia porque percebemos quase que instantaneamente, mas também a longo prazo, os desdobramentos positivos que causam e que ainda vão gerar histórias e conhecimentos pra gente trocar coletivamente e fortalecer nossa luta”, finaliza.

Minas Gerais: práticas agroecológicas e economia feminista com o Grupo AUÊ e o MTST

Dos dias 10 a 12 de dezembro, o Instituto Pacs esteve reunido junto ao Grupo AUÊ! – Estudos em Agricultura Urbana (UFMG), da Rede de Intercâmbios em Tecnologias Alternativas, e mais de 30 agricultoras da Região Metropolitana de Belo Horizonte (MG). O momento contou ainda com a presença da agricultora urbana e coordenadora estadual do MTST-PE, Elisângela Silva. Durante a atividade, os principais temas abordados foram: economia política feminista; divisão sexual do trabalho; autogestão e organização popular; e comercialização. Foram discutidas alternativas a partir dos territórios e a construção de estratégias de autodefesa territorial coletiva, como um ponto de partida de um processo formativo que irá se seguir no próximo ano. Além disso, cerca de 70% da alimentação do evento foi agroecológica e boa parte produzida pelas próprias mulheres participantes do encontro.

Rio de Janeiro: agroecologia, agricultura urbana, cultura preta e ancestralidade com a Coletiva As Caboclas

No dia 31 de outubro, foi realizado o I Encontro de Memórias da Coletiva As Caboclas, puxado pela Coletiva As Caboclas, grupo formado por mulheres do Bosque das Caboclas, em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A atividade aconteceu no sítio dos agricultores Marta Gonzaga e Gaúcho, localizado na Serrinha Mendanha, na mesma região. Começando com um café da manhã coletivo, as pessoas compartilharam as suas histórias e relações familiares, além de abordarem assuntos sobre a importância do consumo de alimentos não processados a partir de práticas agroecológicas e da agricultura urbana e o uso da banana no preparo dos alimentos. Com a presença de agricultoras da Feira da Roça, em Vargem, esse foi um espaço de fortalecimento desses trabalhadores e trabalhadoras que estão passando por um momento de dificuldade por conta da falta de escoamento de produtos na feira. Além do momento de apresentação em roda, houve o preparo de um almoço coletivo, em que todos participaram e contribuíram. Outras temáticas trabalhadas foram a prática coletiva e ancestral de trançar os cabelos de pessoas negras e a solidariedade entre mulheres negras no combate ao racismo cotidiano. 

A coletiva promoveu ainda a celebração do Dia da Consciência Negra, no dia 20 de novembro, no Bosque das Caboclas. De acordo com Saney Souza, filha de dona Hellen Andrews, uma das matriarcas da região, este foi o quinto ano de comemoração da data. “Para mim é grandioso demais porque começou entre a gente, só com a minha família, e aí chegaram mais companheiras e hoje a gente comunica muito quando faz um evento desse”, relata. 

O momento foi de diálogo entre crianças, adolescentes, juventudes, mulheres e matriarcas sobre novembro negro, ancestralidade e cultura africana como uma maneira de manter viva a luta e resistência do povo preto. “A gente está numa sociedade extremamente racista e ter nesse dia as mulheres de uma ocupação urbana à frente dessa insurgência é fortalecedor demais, é uma potência gigante. O sistema diz que a gente não dialoga, existem inúmeras barreiras que eu sei que acontecem na sociedade como um todo, mas a gente rompe tudo isso. As meninas vêm vendo o orgulho de ter o cabelo crespo, de ter o nariz que têm, a boca do tamanho que têm, vendo os turbantes e as cores, vivendo a arte, a música, e isso ensina mais do que qualquer aula, isso é vivência, é a prática do território. Então o dia 20 é gigante, espiritual e ancestral”, explica Saney.

Curso Faxina Ecológica

A Faxina Ecológica das Alquimias da Terra foi uma atividade destinada a mulheres que desejavam internalizar uma forma diferente de lidar com a limpeza física e energética dos seus espaços da casa e do trabalho, e também de si mesmas. Assim, foi uma ferramenta que possibilitou autonomia para as mulheres, tanto em relação ao uso dos produtos sintéticos que prejudicam a saúde, bem como o envolvimento com atividades domésticas que possibilitem a construção de conhecimento, o resgate das práticas ancestrais, os usos e preparos das plantas medicinais e a geração de renda com a produção e comercialização dos produtos.

Foram 4 encontros virtuais contemplando 22 mulheres de 8 municípios do estado do Rio de Janeiro. Os principais temas abordados foram geração de renda e economia doméstica, além de receitas caseiras de materiais de limpeza e cuidado.

Pernambuco: juventude, arte política e comunicação popular com Rede Tumulto e Coletivo Pão e Tinta 

Em Pernambuco, as ações de mobilização a partir da arte e da cultura ficaram por conta da Rede Tumulto e do Coletivo Pão e Tinta, ambos da periferia de Recife. A Rede Tumulto, que surgiu em 2019, atua com processos de articulação e produção com moradores de favelas da região, com o foco na juventude a partir das áreas de comunicação, tecnologia e educação populares. Além da distribuição de cestas básicas e produtos como máscaras e álcool em gel, a rede realizou diversas atividades e oficinas com jovens e crianças. 

Segundo Yane Mendes, cineasta periférica e coordenadora da Rede Tumulto, uma ação emblemática a ser destacada aconteceu na Favela do Papelão, com a entrega de kits de lanches e jogos de memória para crianças, o que era uma demanda dos próprios moradores e moradoras das comunidades. “Nos jogos tinham nomes de coletivos periféricos que trabalharam ao longo da pandemia como uma maneira de comunicar que eles existem e que estão fazendo esses trabalhos. Foi uma forma de fazer um mapeamento com uma metodologia que chega nos adolescentes e nas crianças também, porque elas começaram a pedir que viessem biscoitos nas cestas básicas. Pensamos em como a distribuição poderia também focar nas crianças, com algo voltado para uma alimentação mais infantil, já que muitos não têm acesso porque os pais não têm condições de comprar”, explica.

Além disso, o grupo irá realizar ainda um intercâmbio entre os adolescentes da Favela do Totó e da Cidade de Deus, uma da Zona Norte e outra da Zona Oeste de Recife, para falar sobre os impactos da pandemia e promover atividades de recreação com jogos e ida ao cinema. Para Yane, esta é uma oportunidade de resgatar o debate da perspectiva de futuro para jovens periféricos. “Queremos ampliar essa visão, compreender as pautas, temáticas e ferramentas que eles estão utilizando e o que querem aprender, para assim pautar as metas baseadas no que eles realmente querem. Vamos falar sobre sonhos e resgatar isso que é pouco conversado quando se trata de periferia. Muitos nunca foram a um cinema de shopping, por exemplo, e acreditamos que esse acesso também é politico”, afirma. 

A cineasta acrescenta ainda a importância do fortalecimento da comunidade nas atividades. “Sempre tentamos fazer uma remuneração local, usando transporte, comida e serviços dos moradores e moradoras daqui.” Esse conceito também foi uma das práticas abordadas em uma oficina sobre autocuidado com mulheres da região, com o intuito de pautar a sobrecarga de trabalho reprodutivo na pandemia. “ Elas falavam que tinham poucas horas e precisavam lidar com o peso de cuidar da casa e da comunidade. Foi um momento de escuta ativa, trouxemos poetas, relatorias gráficas e conseguimos ter um retorno positivo, compreendendo melhor os impactos na saúde mental delas, para além do âmbito econômico”, finaliza. 

Já com o Pão e Tinta, foi realizado o podcast Nossa Arte é Política, que tem o objetivo de dialogar com artistas de periferia sobre arte, cultura, comunicação e política. De acordo com Pedro Stilo, agitador cultural e acelerador social do coletivo, a iniciativa envolveu, em sua maioria, a população negra tanto na produção, quanto na participação e no retorno do público. “O podcast, pra gente, é pra tirar os artistas de cima do muro e se colocarem no que fazem, o que acham e o que acreditam. A gente escutou muita gente massa, em sua maioria negros e negras de periferia que a gente conseguiu dialogar, e a gente tá vendo a galera escutando e dando o feedback. Essa era a nossa missão, pegar a galera que permeia pelo movimento de periferia e falar sobre política para eles também quererem falar e ver o quanto esse debate ainda precisa ser feito”, conta. 

O Pão e Tinta é formado por artistas, produtores e produtoras, articuladores e articuladoras sociais e militantes periféricos residentes, em sua maior parte, na Comunidade do Bode, no Bairro do Pina, em Recife. O coletivo realiza diversas ações de potencialização artística da cena independente, utilizando a arte como meio de transformação social, com força ativa nas periferias. Para Stilo, o podcast foi uma das missões que o coletivo tinha em relação à promoção do debate político no meio artístico periférico. “Isso mostra o quanto os artistas precisam abrir outros debates tanto sobre a política institucional, quanto sobre a política social que a galera já faz e não sabe que faz. Eu vejo isso quando começam a falar ‘o meu corpo é político, o que eu faço é político’. Isso abre a mente e faz com que as pessoas se identifiquem e entendam que a gente precisa ocupar esses lugares definitivamente”, complementa.