Afroecologia em Movimento: Ancestralidade e Resistência contra às Linhas de Transmissão de Energia Eólica

No dia 3 de dezembro de 2023, o Brasil perdeu Antônio Bispo dos Santos, conhecido como Nego Bispo, da comunidade Saco do Curtume, no Piaui. Sua partida nos convida a refletir sobre o ciclo contínuo da vida, como ele tão eloquentemente ensinava: começo-meio-começo. Por meio de sua rica oralidade, Nego Bispo ressaltou o papel histórico das resistências dos povos afro-indígenas diante da colonização.

Seu legado transcende as palavras, manifestando-se em ações e reflexões que inspiram movimentos. Ao nos encorajar a reconhecer a identidade Afropindorâmica — um conceito que une a diáspora africana às raízes indígenas —, ele confrontou as visões fragmentadas impostas pelo ocidente. Essa perspectiva reafirma a existência e resistência de povos ancestrais antes da colonização, celebrando a confluências  de suas heranças culturais.

Em sua obra A Terra Dá, a Terra Quer, Nego Bispo destacou os impactos devastadores das linhas de transmissão de energia eólicas sobre comunidades rurais, quilombolas e indígenas, chamando atenção para a desconexão entre o desenvolvimento energético e o respeito aos territórios. Esse alerta reverbera na experiência vivida no Complexo de Assentamentos do Prado, em Tracunhaém, na Zona da Mata Norte de Pernambuco. A instalação da Linha de Transmissão 500 kV Campina Grande III – Pau Ferro, conduzida pela empresa Rialma, afetou diretamente os assentamentos Nova Canaã, Chico Mendes I e Ismael Felipe, trazendo consequências sociais e ambientais significativas.

Desmatamento e trabalhos não autorizados para a instalação da Linha de Transmissão no assentamento Chico Mendes I – Tracunhaém (PE). Créditos das imagens: acervo Sítio Ágatha.

Desmatamento e trabalhos não autorizados para a instalação da Linha de Transmissão no assentamento Chico Mendes I – Tracunhaém (PE). Créditos das imagens: acervo Sítio Ágatha.

A expansão das energias renováveis no Brasil: impactos sociais, raciais e de gênero nas comunidades rurais

No Brasil, a integração de fontes “renováveis” à matriz energética começou há cerca de duas décadas. Hoje, energia solar e eólica representam 22,5% da capacidade instalada, com forte concentração no Nordeste. No entanto, essa expansão tem ocorrido sob o pretexto do “desenvolvimento sustentável”, resultando em apropriações de terras e  deslocamentos forçados de pequenos agricultores radicalizados. 

Embora a luta contra as mudanças climáticas seja uma prioridade política global inquestionável, é crucial examinar como os projetos “verdes” são planejados e implementados, bem como seus impactos diretos sobre as terras e os meios de subsistência de comunidades rurais. A apropriação de terras vai além do uso direto da terra para a geração de energia eólica, abrangendo também as infra estruturas associadas, como a transmissão de eletricidade.

Por  motivos como esse  Breno Bringel (2023) critica esse consenso global de descarbonização, destacando como as políticas energéticas frequentemente favorecem interesses financeiros e corporativos em detrimento da justiça climática. Esse cenário é particularmente evidente nas áreas rurais do Nordeste, onde comunidades negras continuam sendo desapropriadas, perpetuando ciclos de opressão histórica.

É importante lembrar, como afirmou a destacada antropóloga Lélia González (1983), que o conceito de “raça” constitui um elemento crucial, influenciando as dinâmicas cotidianas das relações interpessoais e institucionais, assim como o acesso a direitos e oportunidades. Essa influência racial está intrinsecamente ligada à experiência de gênero. Ao mesmo tempo, o gênero não pode ser analisado de forma isolada, pois está profundamente entrelaçado com a questão racial e a classe social. A configuração contemporânea do capitalismo e do patriarcado coloca as mulheres, especialmente as negras, em uma posição desfavorável. Elas enfrentam a sobrecarga do trabalho não remunerado, muitas vezes têm seus direitos legais negados e são condenadas a uma vida precária às margens do capitalismo.

Resistência das mulheres negras e camponesas à instalação das torres em Tracunhaém. À direita, Maria da Conceição Gonçalves, moradora do assentamento Nova Canaã. À esquerda Nzinga Cavalcante, moradora do Sítio Ágatha. Créditos das imagens: Gus Cabrera (2022)

Resistência das mulheres negras e camponesas à instalação das torres em Tracunhaém. Créditos das imagens: Gus Cabrera (2022).

Nzinga Cavalcante (2022) ilustra essa realidade ao oferecer um poderoso testemunho sobre as violências de gênero e raça que as mulheres negras enfrentam ao administrar territórios rurais. Relata como a empresa responsável pelas linhas de transmissão no Sítio Ágatha  intensificou o desrespeito ao descobrir que eram mulheres que administravam a terra:

“A empresa é desumana, completamente desumana. Quando descobriram que eram mulheres quem administravam a terra, o desrespeito aumentou. Tivemos que nos impor com alegações jurídicas e humanas. Eu me sentia como quando chegaram à África, para roubar nosso ouro, levando as pessoas sempre para a ganância do dinheiro, para a avareza, e dessa avareza para o sangue, esse pecado”

Essa reflexão se relaciona com a análise da socióloga Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2022), que aponta que o controle territorial por meio da financeirização da terra foi um mecanismo chave da colonização. Os colonizadores transformam os territórios em ativos financeiros, rompendo os ciclos ancestrais de gestão comunitária, afetando especialmente as mulheres negras, uma vez que as leis coloniais estabeleciam que apenas os homens podiam ter acesso legal à terra. Esse contexto de despojo e exclusão destaca a necessidade de uma mudança de paradigma na compreensão da relação entre a terra e a mulher negra.

Saberes ancestrais como caminho para justiça Afroecologica 

A tradição africana e indígena possui uma visão holística, reconhecendo que todos compartilham a mesma natureza. É essencial preservar e transmitir às próximas gerações a ideia da terra como um elemento sagrado em uma dimensão espiritual. Na memória coletiva do Sítio Ágatha guardam-se diversas práticas tradicionais, transmitidas por meio de cantos durante o plantio do milho, danças para alegrar as crianças e preparações coletivas da comida. Essas práticas fortalecem o vínculo com a natureza e a ancestralidade, apontando para caminhos que superem a crise ambiental e o ódio racial na sociedade brasileira. Luiza Cavalcante (2022), ao criar o conceito de Afroecologia, enfatiza essa conexão:

“Tenho memória do cuidado pela natureza, pela vida e por quem tem fome. Essa relação com a terra e a vida me acompanha e faz parte do Sítio. Buscamos manter essa forma de cuidado em nossas atividades diárias. Esse cuidado é Afroecologia. Lembramos como nossos pais e avós cuidavam da terra. Trazer isso para o presente tem sido importante e fortalecedor. O que o povo negro faz está ligado à África”.

Luiza Cavalcante colhendo os frutos da terra. Crédito: Gus Cabrera (2022)

Luiza Cavalcante colhendo os frutos da terra. Crédito: Gus Cabrera (2022). 

Afroecologia, como concebida pela mestra Luiza Cavalcante, reconhece que muitas das práticas atualmente associadas à agroecologia são, na verdade, saberes milenares desenvolvidos pelos povos afrodescendentes. Fundamentada nos conhecimentos tradicionais africanos, a Afroecologia não é apenas uma prática agrícola, mas um movimento que promove uma relação holística com a natureza. Ao integrar métodos agrícolas que dialoguem com o ecossistema, ela fortalece a segurança alimentar das comunidades e fomenta a resiliência climática.

A vivência dos saberes ancestrais valoriza práticas culturais e apresenta soluções práticas e inovadoras para os desafios ambientais contemporâneos. O conceito de Afroecologia, nesse contexto, reflete a proposta da intelectual quilombola Beatriz do Nascimento (2022), que enfatiza a importância de preservar os saberes e práticas que sustentaram as comunidades negras ao longo do tempo. Essa continuidade negra reafirma a resistência da ancestralidade como uma força viva contra a destruição ambiental e social.  

Em contraste, a realidade das linhas de transmissão de energia revela o conflito entre a resistência comunitária e a exploração predatória do território. A instalação da linha de transmissão de 500 kV Campina Grande III – Pau Ferro, conduzida pela empresa Rialma, exemplifica esse conflito. Este projeto foi realizado sem a devida consulta às comunidades diretamente afetadas e sem a realização de audiências públicas, infringindo a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981), que estabelece a necessidade de participação das comunidades na tomada de decisões que impactem seus territórios. A falta de transparência e a ausência de medidas mitigatórias resultaram em impactos devastadores, como a morte de animais, a diminuição de populações de abelhas, apropriação indevida de terras, fragmentação social e mudança no modo de vida dos assentados da reforma agrária.

empresa Rialma, controlada pela família Caiado, carrega um histórico preocupante, com acusações de práticas de trabalho análogo à escravidão em suas fazendas, o que reflete uma trajetória de exploração sistemática e desrespeito aos direitos humanos. Diante dessa realidade, as comunidades afetadas têm reagido com resistência criativa e propositiva, adotando práticas de mapeamento participativo, oficinas e eventos culturais como forma de documentar os impactos e fortalecer suas tradições. Essas iniciativas são exemplos de como a Afroecologia é a essência dos saberes ancestrais e a luta pela proteção socioambiental onde suas ações são poderosas ferramentas de resistência contra a exploração predatória da nova etapa do capitalismo. 

Texto publicado originalmente por Sítio Agatha, em 15/01/2025. Clique aqui para acessar a publicação original.

Referências:

BISPO DOS SANTOS, Antônio. A Terra Dar a Terra Quer. São Paulo: Editora Ubu, 2023.

BRIGEL, Breno. Del consenso de los commodities al consenso de la descarbonización. Disponível em: https://nuso.org/articulo/306-del-consenso-de-los-commodities-al-consenso-de-la-descarbonizacion. Acesso em: 12 nov. 2023.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, L. A.; OLIVEIRA, M. C.; CARVALHO, J. M. (Org.). Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Brasília: ANPOCS, 1983.

NASCIMENTO, Beatriz. Quilombola e intelectual: possibilidade nos dias de destruição. São Paulo: Editora Filhos da África, 2017.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

Autor:

Luis Antonio da Silva Soares é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e mestre em Extensão Rural e Desenvolvimento Local pela mesma instituição. Especialista em Educação Ambiental e Cultural pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE) e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atuou como bolsista na Iniciativa de Políticas de Transações de Terras (Land Deal Politics Initiative – LDPI) e pesquisador no monitoramento do Projeto Dom Helder Câmara no semiárido brasileiro. Atualmente, é educador na Associação Sítio Ágatha, desenvolvendo projetos nas áreas ambientais e culturais, com foco em agroecologia e no fortalecimento de comunidades tradicionais. Também integra o Grupo de Estudos Macondo: Artes, Culturas Contemporâneas e Outras Epistemologias da Unidade Acadêmica de Serra Talhada (UAST/UFRPE). Realiza estágio de doutorado sanduíche no Instituto de Estudios Regionales (INER) da Universidad de Antioquia, na Colômbia.

Pesquisadoras colaboradoras e equipe:

Nzinga Cavalcante é mãe de Ágatha, técnica em Agroecologia pelo SERTA (PE), graduanda no Bacharelado em Agroecologia, Educação Popular e Campesinato na UFRPE. Esta tesoureira da Associação Sítio Ágatha onde desenvolve atividades como educadora popular e como coordenadora de logística.

Luiza Cavacalnte é mãe de Nzinga e avó de Ágatha, brincante popular, mestra, educadora popular, técnica em Agroecologia pelo SERTA (PE). Conta com uma vasta trajetória em movimentos sociais e populares. Atualmente está presidenta da Associação Sítio Ágatha, onde realiza tarefas de articulação, organização e coordenação de projetos.

Editor: Gustavo Cabrera Christiansen é comunicador social formado pela Universidad de Buenos Aires (Argentina). Há mais de uma década participa de coletivos de Comunicação Comunitária e Popular. Atualmente está mestrando no Programa de Pós Graduação na Universidade Federal de Pernambuco. Integra a Associação Sítio Ágatha, onde tem coordenado a área de comunicação de diversos projetos.

Revisão textual: Jô Rodrigues é plurifacetada, apaixonada pelas artes e pelos encontros. Percorre em vários territórios como a fotografia, a poesia e a contabilidade. Atualmente realiza seu propósito de compartilhar formas de elaboração de projetos culturais, sociais e ambientais, comunicando sobre a construção coletiva de relações sustentáveis.

Designer gráfico: Diego Amorim é formado em Publicidade e propaganda (2011) e técnico em Design gráfico (2006). Já trabalhou alguns anos na área de comunicação em agências de publicidade do Recife como Diretor de Arte. Também trabalhou para a Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife e na Escola Livre de Redução de Danos, dentre outros. Como ilustrador autodidata, nos últimos anos pesquisa cultura, história e arte africana outorgando um diferencial a seu trabalho autoral.