Seja no Maranhão, onde Rosenilde Santos, a Rosa, quilombola e quebradeira de coco babaçu, e Kaw Gamela, dos povos indígenas Akroá Gamela, se articulam com diferentes povos tradicionais brasileiros; ou na Bahia, onde Rita de Cássia e Juliana Santos, do Movimento Sem Teto da Bahia (MSTB), colocam força diariamente nas ocupações em que residem, em Salvador, a autogestão está presente. Sua prática consiste na organização e na gestão de espaços de produção e convívio por todos os integrantes envolvidos no processo, de forma horizontal e sem hierarquias, na pactuação do comum no cotidiano.
Esta é a pauta discutida anualmente no Curso Autogestão, promovido pelo Instituto Pacs desde 2015. A partir do tema “Territórios em luta: teias de autogestão e insurgência”, a quinta edição da formação, que aconteceu dos dias 6 a 8 deste mês, em Teresópolis (RJ), região serrana do estado, foi marcada pela troca de saberes, experiências e resistências de movimentos sociais de oito estados do Brasil: Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, Maranhão, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Bahia e Ceará.
Ao longo dos cinco anos de existência, a formação já recebeu mais de 35 movimentos sociais, que compartilharam histórias de aquilombamento, aldeiamento, comunitarismo, assentamento, coletivização, cooperativização, feminismo comunitário e territorialidade como aposta de transformação histórica e social. “O objetivo sempre foi articular práticas autogestionárias e criar laços e vínculos em âmbito nacional”, explica Aline Lima, educadora popular e coordenadora do Instituto Pacs.
O curso é ainda um espaço de construção coletiva do “Plano Popular de Alternativas ao Desenvolvimento”, um plano de ação integrada entre movimentos populares sociais que lutam pela moradia, terra e território, agroecologia, agricultura urbana, resistências das comunidades e povos tradicionais e direitos das mulheres.
Laços de territorialidades e resistências
Para Rosa, a luta das quebradeiras de coco babaçu se tornou mais rica a partir da integração com a Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais no Maranhão, experiência de articulação que apresentou durante uma fala no curso. “A gente troca com indígenas, quilombolas e outros povos de diferentes locais. É uma chance de trabalhar, discutir e entender o processo de colonização que afetou os nossos territórios, nossas sementes, nossas memórias”, explica. Além da formação pessoal, ela conta que essa é uma oportunidade de construção coletiva de luta entre gerações. “Dentro da teia a gente consegue ter controle e entendimento da diversidade dos modos de vida e em como passar isso para os mais novos também terem coragem de resistir e produzir”, complementa.
A importância de formação dos jovens também foi citada durante o relato das estratégias de luta dos povos indígenas do Maranhão, em que Kaw Gamela citou a autogestão como ferramenta essencial para a mudança social em meio a uma conjuntura de ataques, repressões e invasões de terra. “Não é só a nossa luta que vale, todas as lutas são importantes. Nós temos que nos fortalecer e criar métodos para agir juntos”, afirma ele, que aponta a educação como principal pilar para a gestão dos territórios formados por diversas aldeias em um mesmo espaço. “Essa é a nossa base para a formação de sujeitos, de novos guardiões da nossa floresta, como uma forma de garantir a (re)existência da nossa cultura.”
Também foi partilhada a história das matriarcas do Bosque das Caboclas, território ocupado em Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro. No local, situado em um bairro periférico e extremamente afetado pela violência, vivem mais de 300 famílias, sendo a maioria lideradas por mulheres referências como a dona Hellen, mãe de Saney Souza, participante de diversas edições do curso. Ela, que é integrante da Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste e da auto-organização de mulheres chamada Coletiva As Caboclas, apontou a necessidade de união de diferentes povos. “Se alguém achar que a solução está fora do território, está no lugar errado. A solução vem de onde nós estamos e só podemos acreditar em alguma mudança se construirmos alternativas juntos”, afirma.
A partir do conceito de “morar e plantar” como um lugar de sobrevivência, Saney aposta na agroecologia e na agricultura urbana como formas de diálogo e comunicação: “Aqui na rua nós construímos uma horta comunitária num espaço que ocupamos e ali a gente dialoga com crianças, com a juventude, com as mulheres mais velhas, com as que estão desde o início… Esse fazer da agroecologia é nosso, do nosso povo preto, e nada mais justo que a gente afirmar esse saber tradicional preto e indígena e perpetuar isso é uma forma de resistência. A nossa autogestão amplia a nossa pluralidade.”
Já Joviano Mayer, integrante do Coletivo Margarida Alves, de assessoria jurídica popular, ativista das Brigadas Populares de Minas Gerais e ator da Trupe Estrela, um grupo de teatro político de rua do Espaço Comum Luiz Estrela, acredita na importância da conexão entre territórios e experiências autogestionadas. “Eu vejo uma riqueza na ideia de promover encontros que podem gerar trocas de memórias, tecnologias sociais, aprendizados, vínculos e conexões em diversas partes do país”, conta ele, que está presente na formação desde a primeira edição.
Ao final do três dias, foram apontados encaminhamentos de novos momentos de encontro, intercâmbios culturais e formativos e ações coletivas de construção de conhecimento a partir das experiências trocadas. Para Aline, coordenadora do curso, essa é a nossa maior aposta em promover articulações entre povos e movimentos sociais. “Nós precisamos das organizações populares e dos diferentes saberes para nos potencializarmos e sermos mais fortes nas nossas lutas”, afirma.